PARTE 2 – A MISSÃO NO GOVERNO FEDERAL – A SAGA DO PADRE NIVERSINDO CHERUBIN (CRIADOR DAS FACULDADES DE ADMINISTRAÇÃO HOSPITALAR NO BRASIL)

A SAGA DO PADRE CHERUBIN
MISSÃO NO GOVERNO FEDERAL
Em abril de 1973 o Pe. Cherubin foi nomeado para atuar como Coordenador da Coordenação da Assistência Médico-Hospitalar do Ministério da Saúde. Nunca um padre havia sido chamado para atuar em função tão importante no Ministério da Saúde. Mas também nunca um padre tinha sido presidente da Associação dos Hospitais de São Paulo, cargo que o Pe. Cherubin ocupava na ocasião.
Sua indicação se deveu a uma combinação de fatores. A entrevista com o Ministro Delfin Netto para liberar recursos para o Programa Nacional de Controle do Câncer ensejou a oportunidade para uma conversação mais ampla sobre o estado de coisas do setor hospitalar brasileiro. O Ministro da Saúde era o médico Mário Machado de Lemos, que tinha sido Secretário de Saúde de São Paulo, e que era amigo do prof. João Sampaio Góes Junior, o médico que levou o Pe. Cherubin ao ministro Delfin Netto. O ministro conhecia o trabalho de seu amigo e, por meio dele, conhecia o trabalho do Pe. Cherubin. Assim, quando o Presidente Médici se interessou pelo assunto da coordenação dos hospitais e o nome do Pe. Cherubin foi aventado, o endosso das referências elogiosas o levaram ao cargo.
A nomeação do Padre Cherubin foi muito festejada pelo setor. Em primeiro de maio de 1973 a Associação dos Hospitais do Estado de São Paulo publicou, no Jornal O Estado de S. Paulo, um comunicado que incluía um convite para um jantar para celebrar a nomeação a ser realizado no dia 25 daquele mês. Após um preâmbulo com detalhes da publicação no Diário Oficial enumera as qualificações do homenageado:
“O padre Niversindo Antônio Cherubin é formado em Administração Hospitalar, foi um dos fundadores e secretário geral durante 5 anos da Federação Brasileira de Hospitais, ocupa há 5 anos o cargo de presidente da Associação dos Hospitais do Estado de São Paulo, foi um dos fundadores e é atualmente diretor do Colégio Brasileiro de Administradores Hospitalares, fundou e é diretor responsável e redator da revista Vida Hospitalar e dirigia, como superintendente, a Sociedade Beneficente São Camilo e o Hospital São Camilo desta capital e é o Diretor Geral do Curso de Administração hospitalar do INPDH – Instituto Brasileiro de Desenvolvimento e de Pesquisas hospitalares, do qual é vice-presidente.” Assina o Dr. Cícero Aurélio Sinisgalli, Presidente em exercício.
O Pe. Cherubin, em seu discurso de posse, disse que faria o possível para melhorar a situação dos hospitais e reconheceu que os hospitais brasileiros navegavam sem rumo, afirmando que careciam de normas técnicas e administrativas para a sua construção, operação e administração.
Após o discurso, muito elogiado pelo ministro, foi conduzido ao seu gabinete, que ainda não conhecia. Ali foi informado que seu antecessor não faria a transferência de cargo porque não gostou de ser substituído. Tanto que havia abandonado o cargo uma semana antes de sua chegada. O Pe. Cherubin teve que descobrir sozinho o que aquela coordenadoria fazia conversando com cada um dos seus 80 funcionários.
Como o Ministério da Saúde ainda ficasse no Rio ele precisou deixar a administração do hospital São Camilo de São Paulo, mas não foi morar no Rio de Janeiro. Mesmo com direito a hospedagem cinco estrelas no Copacabana Palace, hospedava-se de segunda à sexta-feira na casa dos camilianos, no bairro da Tijuca, e nos fins de semana, voltava a São Paulo, para dar suas aulas no INPDH, o que fazia na sexta-feira a noite e nos sábados.
O Pe. Cherubin, como todo mundo, já havia ouvido falar da pouca “voglia” dos funcionários públicos brasileiros, mas, ainda assim, habituado a ética de trabalho do Sul, da Itália e em empresas e hospitais privados, ficou abismado com a desfaçatez dos funcionários públicos de sua coordenadoria. Ele nunca havia trabalhado em órgão público e não estava familiarizado com a burocracia e a tramitação de processos, mas ficou espantado com a lentidão e a morosidade com que eram feitos os encaminhamentos e pareceres. Esse descaso era, de todas as barbaridades com que foi se deparando no serviço público, aquele que mais o incomodava. Constatava que os funcionários eram regiamente pagos, com o dobro ou triplo do que recebiam os do setor privado, gozavam de privilégios escandalosos e, mesmo assim, tinham uma atitude de absoluta displicência com suas tarefas e obrigações. Reclamando com um advogado de São Paulo ficou sabendo que essa atitude é conhecida como “desídia” e abrange desde a falta de comprometimento e atrasos constantes até a realização de tarefas de forma descuidada ou a eventual falta de educação com os cidadãos. Como nunca tinha ouvido falar nisso o advogado explicou que era tão raro alguém ser acusado de “desídia” que muitos juízes nem sabiam do que se tratava.
Mesmo sabendo que fazia uma declaração de guerra, informou aos responsáveis de seu setor que nenhum processo passaria a noite na mesa de seu gabinete e nenhum atravessaria uma semana na sua coordenadoria.
Teve outro espanto quando descobriu que nenhum dos seus funcionários havia sido selecionado e contratado pela sua coordenação. Todos, sem exceção, eram provenientes de outros órgãos federais, enquanto os que foram contratados por sua coordenação estavam trabalhando em outras divisões, inclusive em outros ministérios. Soube que, para requisitar ou transferir um funcionário, bastava o próprio servidor e seu chefe fazerem um simples memorando e obter o “de acordo” da outra parte. Outra coisa que o fez cair sentado foi quando disseram a ele que a orientação era para que nenhum órgão do Ministério deixasse de gastar a totalidade da verba prevista no orçamento do ano. Todo mundo tinha que gastar tudo, até o último tostão, mesmo que em bugigangas, porque caso não o fizesse, sofreria redução proporcional no orçamento do ano seguinte.
Depois de recuperar-se do assombro, o Pe. Cherubin fez um levantamento do que sua área precisava em equipamentos e suprimentos e saiu peregrinando pelos gabinetes do ministério. Apresentava-se e perguntava se havia verba sobrando. Habilidoso, explicava sua missão, mostrava sua lista de necessidades e pedia que comprassem algo do que precisava com sua gordura de verbas. Então, assim que os equipamentos ou suprimentos chegavam, ele ia pessoalmente agradecer e fazer um memorando solicitando que as mercadorias ou os equipamentos recebidos fossem cedidos para a sua coordenadoria. Acabou fazendo amigos e equipando sua área com tudo do bom e do melhor.
No Ministério da Saúde inteiro a tolerância em relação à frequência dos funcionários era total. O secretário da saúde do Ministério apresentou a ele uma senhora informando ser sua secretária e dizendo que qualquer assunto da coordenadoria poderia ser encaminhado diretamente para ela. A secretária, muito solícita e sorridente, se colocou à disposição, mas foi logo informando que não vinha trabalhar às quartas-feiras porque precisava fazer a feira…
Os médicos, então, esses eram de uma pontualidade nunca vista. No sentido de que nunca ninguém jamais a tinha visto. Pontualidade? Não sabiam o que era e nem queriam saber. Vinham trabalhar se, quando e como queriam. Para tentar por ordem no barraco o Pe.Cherubin determinou que, daí em diante, os médicos assinassem o ponto na frente de sua secretária. Seria da responsabilidade dela colocar o horário de entrada e de saída e, em caso de não comparecimento, fazer o traço em vermelho para cortar o ponto e descontar do pagamento.
Foi uma conflagração. Um médico, proprietário de um hospital no interior do Rio de Janeiro e que era o presidente da associação médica do estado, figurão empoado que mais tarde seria eleito prefeito da cidade de Niterói, comparecia ao serviço apenas uma vez por semana e, mesmo assim, por poucas horas. O Pe. Cherubin solicitou a ele que pedisse demissão para colocar em seu lugar alguém disposto a trabalhar todos os dias.
O médico fez cara feia, mas temendo que sua “desídia” se tornasse pública, redigiu o pedido. Todavia, conhecedor dos meandros e maroteiras que regem as sinecuras do serviço público, ato contínuo, fez a notícia de sua demissão espalhar-se pelo Ministério como rastilho de pólvora. O telefone do Pe. Cherubin não deu mais sossego: todos os diretores e vice-diretores, todos os chefes e subchefes do Ministério ligaram pedindo para que ele voltasse atrás. Argumentavam que ter aquele médico na folha de pagamento, por si só, já engrandecia o Ministério da Saúde, mesmo que ele não aparecesse para trabalhar.
Apesar do alarido, o Pe. Cherubin, educado na linha de que quem não trabalha não come, foi ao ministro da saúde com o pedido de demissão do médico. O ministro o recebeu sabendo do assunto. Mostrou-se muito educado e compreensivo, mas fez o Pe. Cherubin se sentir o próprio Dom Quixote investindo contra os moinhos de vento. Demitir aquele médico era comprar problemas e ele não tinha virado ministro fazendo inimigos.  
O Pe. Cherubin, porém, nunca esmoreceu ante as dificuldades. O que ele tinha dito no discurso de posse era no que acreditava: os hospitais brasileiros careciam de normas técnicas e administrativas para a sua construção, operação e administração.
Administrador proficente que era, o Pe. Cherubin conhecia a máxima de Edward Deming, “Você não pode administrar aquilo que não pode medir”. O Pe. Cerubin, assim como Deming, acreditava que, para tomar decisões corretas você precisa saber onde está pisando. E ninguém, no Ministério da Saúde, tinha a menor ideia do tamanho e da localização dos hospitais brasileiros. Mais grave, o governo brasileiro não tinha conhecimento de quais eram, como eram e onde estavam os seus hospitais públicos.
Tentando encontrar essa informação o Pe. Cherubin descobriu, com surpresa, que o Ministério da Saúde, sim, até tinha uma Seção de Estatística. Estava enfiada no fim de um corredor. Ele foi lá e soube que a seção tinha alguns milhares de fichas de hospitais cadastrados, colocadas em gavetas de fichários. Também descobriu que, todos os anos, o departamento enviava aos hospitais cadastrados um formulário solicitando informações para atualizar o censo hospitalar. Salvo exceções, os hospitais dedicavam uma dezena de horas para responder as questões constantes do formulário. Depois, postavam no correio, escrupulosamente, para cumprir o prazo estipulado. E o Ministério recebia os formulários e os empilhava, formando uma montanha de papel que ficava tomando pó em um canto da repartição. E nada mais fazia com eles. Não tabulava as informações. Não produzia relatórios. Não analisava. E, como os formulários não produziam dados úteis, deles não vinham informações para a tomada de decisões e, é óbvio, nem para definir políticas. Era tudo de mentirinha. Para um incrédulo Pe. Cherubin, que falava francês com fluência porque, durante as férias do seminário, tinha ido trabalhar na França para ganhar algum dinheiro, aquela encenação de censo hospitalar soava como coisa feia só para “épater les Bourgeois”, ou seja, para embasbacar a “burguesia”.
O Pe. Cherubin ficou uns dias dando tratos à bola sobre o que fazer com os formulários relativos a 1971 que aguardavam empoeirados. Tentar fazer a tabulação com aquele pessoal que o olhava com hostilidade brilhando nos olhos era pura perda de tempo.
Então, deu-se a “Eureka”. Pegou os formulários e os levou para São Paulo, onde encarregou seus alunos, os estudantes de Administração Hospitalar do INPDH, para fazerem, em mutirão, a tabulação e a transcrição dos dados.
Finda a tabulação as planilhas mostravam que o Brasil dispunha, em 1971, de 4.067 hospitais, sendo 3.407 particulares e 660 oficiais. Tinha 367.522 leitos, sendo 242.921 em hospitais particulares e 124.601 em hospitais públicos.
Os dados compilados pelos seus estudantes foram reunidos em uma publicação sofisticada, feita com papel couchê e capa dura, no chamado “tamanho de mesa”. O miolo tinha 300 páginas e era ilustrado com abundantes imagens e gráficos. A publicação foi denominada “Cadastro Hospitalar Brasileiro” e teve uma tiragem de 1.000 exemplares que se esgotaram em dias porque era a primeira vez que o setor tinha acesso a um panorama tão completo sobre a situação hospitalar Brasileira.
Quando o Pe. Cherubin levou um exemplar encadernado ao Ministro da Saúde ele o folhou maravilhado. Mandou chamar todos os coordenadores do Ministério para mostrar a obra. Em seguida pediu mais um exemplar para entregar ao presidente da República.
O segundo trabalho que o Pe. Cherubin se propôs a fazer era mais complicado. Tratava-se de elaborar as normas técnicas para a construção de hospitais no Brasil. Essa era uma tarefa urgente porque, na falta de normas, cada dono de hospital, cada arquiteto e cada construtor hospitalar tentava reinventar a roda. Algumas das rodas eram até redondas, mas as havia de todas as formas. Até as quadradas, que, como na antiga piada, eram substituídas por outras quadradas quando gastavam-se os cantos…
A equipe encarregada de produzir aquele trabalho histórico foi formada por 4 engenheiros, 4 arquitetos hospitalares, 20 consultores técnicos e 4 desenhistas. Após mais de um ano de trabalho exaustivo foi publicado o Manual de Normas de Construção e Instalação do Hospital Geral. Como exemplo do nível do detalhamento, o capítulo dedicado aos componentes das instalações elétricas, hidráulicas, mecânicas e especiais, que incluíam as instalações de oxigênio e gases hospitalares, traziam um memorial descritivo e os parâmetros a serem minimamente observados para o funcionamento do Hospital. Era o primeiro Manual de Normas hospitalares do Brasil e foi copiado em toda a América Latina. Sua consistência técnica, adotada como padrão no país, ajudou a projetar a arquitetura hospitalar brasileira. O arquiteto e engenheiro Jarbas Karmann e o arquiteto e médico Domingos Fiorentini, colegas do Pe. Cherubin na Faculdade de Administração Hospitalar, atuaram como consultores para a definição das normas. Como resultado, tornaram-se referências internacionais em arquitetura hospitalar e projetaram, em conjunto ou separadamente, mais de 1.000 obras hospitalares no Brasil e em várias partes do mundo. Graças ao prestígio internacional, em 2008 o arquiteto e engenheiro Jarbas Karman trouxe para o Brasil o IX Congresso Internacional de Engenharia e Arquitetura Hospitalar.
Tive oportunidade de presenciar pessoalmente a abertura do Congresso, realizado no auditório do Hospital Albert Einstein. Na oportunidade o Pe. Cherubin foi convidado para a mesa e foi reconhecido pela publicação do Manual de Normas, sendo aplaudido de pé pela plateia formada por centenas de arquitetos e engenheiros hospitalares vindos dos quatro cantos do globo.
Durante a permanência no Ministério da Saúde o Pe. Cherubin querubim foi também nomeado diretor do Instituto de Previdência do Clero, que tinha sede no Rio de Janeiro. Nessa função, o Pe. Cherubin foi esmiuçar as finanças da entidade. Ficou horrorizado. Ele mesmo contribuía para o instituto e viu que, a depender do que tinha verificado, nunca conseguiria se aposentar. Na primeira reunião da diretoria, sob a liderança de Dom Aloísio Lorscheider, foi incisivo: “senhores, com todo o respeito, eu posso afirmar que o balanço que acaba de ser lido não é verdadeiro e contém informações inverídicas”. Todos ficaram atônitos e o monsenhor Tapajós, que cuidava das finanças, reconheceu que, de fato, a instituição não tinha como se sustentar com as próprias pernas. Diante da dura realidade mostrada pelo Pe. Cnerubin o instituto recorreu ao governo federal e o Ministério da Previdência e Assistência social baixou o ato criando legislação específica para a aposentadoria dos religiosos e religiosas.
Em junho de 1974, enquanto ainda no governo, recebeu convite do Ministério da Saúde britânico para conhecer os serviços de saúde da Inglaterra. Lá permaneceu 15 dias e voltou bem impressionado com o padrão de assistência médica dispensado gratuitamente a toda a população do país. Especialmente a forma como atuam os médicos de família. Encaminhou relatório recomendando medidas para fortalecer esta forma de atenção à saúde.
No dia 26 de junho de 1975 o Pe. Cherubin recebeu um ofício do Pe. Calisto Vendrame, o Provincial dos camilianos, solicitando que ele pedisse demissão do Ministério da Saúde e voltasse com urgência para administrar o hospital São Camilo de São Paulo, que estava enfrentando sérios problemas de gestão. Sendo religioso, devia atender ao chamado. O Ministro da Saúde lamentou a decisão, agradeceu pela obra realizada pelo Pe. Cherubin e nomeou seu assistente, Dr. Augusto de Abreu Amorim, para o substituir.
 

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